Quando agressor e vítima se confundem
Por Sérgio Coutinho - advogado, presidente da Comissão de Ensino Jurídico da
OAB/AL, mestre em Sociologia e professor de Direito em Maceió.
http://coutinho.blog.terra.com.br. Extraído do site da
Revista Caros Amigos.em 28/11/2006.
O Senador Jorge Bornhausen referiu-se ao PT afirmando que o PFL, partido do qual é Presidente, ficaria livre "desta raça pelos próximos 30 anos". Não é preciso fazer parte do PT para considerar a afirmação ofensiva.
O Sociólogo Emir Sader publicou um artigo em resposta na Revista eletrônica Agência Carta Maior. Ele afirmara que o Senador seria da raça racista e banqueira e uma das pessoas mais repulsivas da República. O artigo pode ser consultado pela internet (www.cartamaior.com.br).
O Sociólogo foi processado pelo Senador por injúria e nesta semana saiu a condenação: um ano de detenção em regime semi-aberto (convertida em prestação de serviços à comunidade ou entidade pública em jornadas não inferiores a oito horas) e perda do cargo de professor da UERJ.
Segundo o juiz, o Sociólogo, ao fazer referência à condição de professor da universidade desrespeitou a Administração Pública, não merecendo o cargo.
O Senador abusou da liberdade de expressão ao ofender um partido com uma denominação tão rude, porém foi ainda mais infeliz quando preferiu processar alguém por crime de opinião. Afinal, enquanto o Senador está constitucionalmente protegido pela imunidade parlamentar sobre crimes de opinião, o Sociólogo não está. O que seria legítima defesa da honra, manifesta pela troca de opiniões em tom análogo (por mais que possamos discordar de conversas nesse tom) apenas foi convertido em processo na tréplica. A réplica foi nos moldes da democracia: um artigo na imprensa eletrônica, chamando ao diálogo o ofensor inicial.
A autonomia universitária e a liberdade de expressão são fundamentais nos tempos democráticos em que vivemos. O segundo princípio foi violado quando a resposta a uma réplica agressiva foi um processo. O primeiro foi violado quando o juiz, contrapondo-se a preceito constitucional, decide, como se reitor da universidade fosse, que o Sociólogo não deve mais ser professor daquela instituição.
Que Emir Sader recorra da sentença, espero que já o tenha feito. Que possamos exercitar a democracia sem correr o risco de processos quando autoridades se sentirem ofendidas quando elas nos tiverem agredido antes.
Comentário de Chico Nunes em 28/11/2006:
O caso não é mais referente a esquerdismo ou direitismo na política nacional. Mas sim, é uma arbitrariedade por parte da dita "justiça cega", que somente enxerga quem tem mais poder e quem tem mais dinheiro. Aliás, o critério básico para os indivíduos irem ou não para a cadeia é o valor de sua defesa. Políticos e pessoas abastadas financeiramente quase nunca vão presos, mesmo cometendo crimes que deveriam ser considerados hediondos, como escravismo, grilagem de terras, abuso de poder e principalmente corrupção. Já quem rouba frutas para se alimentar com certeza irá passar um bom tempo atrás das grades.
Veja ainda texto relativo ao fato, extraído do site Observatório da Imprensa.
Na luta de vozes, aos debaixo o
silêncio
Por Lucília Maria Sousa Romão (07/11/2006) - graduada em
Licenciatura Plena em Letras pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Barão
de Mauá (1988) e doutorado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras de Ribeirão Preto (2002) . Atualmente é Professora Doutora MS-3 da
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto.
Emir Sader, pesquisador, cientista social, escritor e colunista da Carta Maior,
foi condenado, em primeira instância, à perda de seu cargo de professor na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro e a um ano de detenção, em regime
aberto, convertida em prestação de serviços à comunidade. A sentença, dada pelo
juiz Rodrigo César Muller Valente, da 11ª Vara Criminal de São Paulo, condena-o
por injúria no processo movido pelo senador Jorge Bornhausen (PFL-SC). O
episódio ocorreu na semana passada e reclama um gesto de interpretação que se
estenda para além do literal, visto que não envolve apenas duas personalidades,
uma acusação de calúnia e um juiz, mas põe a nu um confronto de discursos, ou
seja, uma luta de vozes. Luta esta que tem historicidade, que é atravessada pela
memória de outros discursos e que só pode ser compreendida se tomarmos o
político que ela encerra e que a sustenta.
Desde a colonização, poucos detentores da terra, em conivência com o poder
religioso manifesto pela voz de jesuítas, cravaram as marcas de uma formação
econômica extrativista, predatória, dizimadora do diferente, centralizadora de
plantios em que os frutos eram concentrados e nunca divididos. Estavam lançadas
as condições materiais da representação de uma colônia, que tomou para si o
discurso e a posição de reproduzir o alheio, ainda que tenha dele sido vítima.
Os sem-território, os sem-nome, os sem-identidade, enfim, os braços
trabalhadores eram colocados ao lado das mercadorias, disputando com elas o
lugar de objetos coisificados e mercantilizáveis. Quando tais braços punham-se a
clamar, revoltar-se ou nomear a si mesmos como vítimas ou como merecedores de
outras representações, eram narrados como incômodos, faltantes, criminosos e,
assim, eram merecedores de punição. O tronco e a morte cumpriam essa tarefa,
imprimindo a condenação do silenciamento aos que se autorizavam a condição de
falantes.
Pacíficos e distantes
Esgotada a cana, o ouro se mostrou pródigo em sustentar relações de parentesco
com aquelas que nutriram o discurso da descoberta de nossa terra. Novos braços
para alimentar a extração, fôlego outro para pequenos vilarejos, estufa para que
os sinhozinhos da cana ampliassem seus domínios e fizessem seus filhos
tornarem-se doutorzinhos. De novo, materializava-se o sentido dominante de
interdição ao clamor por liberdade, ainda que ele viesse de representantes das
classes abastadas, minimamente inconformadas com a lógica da escravidão nutrida
pelo açoite e pela espada.
Constrói-se um imaginário de que aos debaixo – vendedores de sua força de
trabalho – restam a submissão, o silêncio e o aceite, ao passo em que aos de
cima – donos dos capitais – é confiada a tarefa de delegar quem diz, o que se
diz, de que modo podem as palavras ser ditas, a serviço de que interesses elas
devem ser postas.
Também se depreende dessa inscrição histórica dos sentidos que os de cima
colocaram-se assimetricamente em relação aos interlocutores, tomando para si o
direito não apenas de governo de todos (e só isso já seria o bastante), mas o
lugar de criar leis próprias, comprar acordos que os favorecessem, negociar
sentenças, corromper autoridades eclesiásticas, políticas e jurídicas e
postar-se como a única voz de autoridade e comando do/no país. De novo, aos
dissonantes, o lugar de criminoso com direito a cabeças cortadas e exposição
pública de torturas.
As várias repúblicas oligárquicas, alimentadas pelo café, só vieram fortalecer
tal imaginário, marcando os efeitos de autoridade militar, centralizadora,
disciplinante e mantenedora da ordem do Estado, da família e da igreja. Sob o
manto de tomadas de poder e golpes militares, inscreveu-se um modo desigual de
virtualizar os acessos sem democratizar os poderes, de ensaiar a expressão da
liberdade sem permitir a ação de "perigosas" mobilizações dos trabalhadores, de
dar aos pobres mantendo-os pacíficos e distantes das ações de militância.
Retórica de proibições
Ou seja, de manter o controle dos sentidos e dos discursos que circulavam então,
preservando interdições e punições aos que reivindicavam. Aos desejantes de
mudanças na ordem fundiária, por exemplo, os canhões foram capazes de garantir
extermínios em massa; homens e mulheres tiveram sua garganta cortada e sua
língua tornada gravata em Canudos, inscrevendo o lugar desejado de calar, a voz.
A língua falada, cantada e rogada como prece ou praga precisava ser arrancada
para que a palavra não entrasse na disputa pelos sentidos e ficasse interditada
para sempre.
Também em Contestado, dizimar foi estratégia para silenciar muitas vozes ao
mesmo tempo. A manutenção dos privilégios de poucos, a concentração da terra e a
centralização do poder econômico no centro-sul deu as bases para o discurso de
alijamento das massas, sustentado pela formulação "façamos a revolução antes que
o povo a faça". No processo de industrialização, o longo capítulo da ditadura
militar instalou o sentido dominante sobre a ordem pretendida para o país –
desenvolvimento e progresso. A logística do crescimento econômico tentava
impedir a escuta dos ecos dos quartéis, dos intelectuais no exílio, das mortes e
desaparecimentos, muitos dos quais ainda hoje não esclarecidos.
Tal historicidade é indiciária de como as classes dominantes criaram (e ainda
criam) uma retórica de proibições para conter outros discursos tidos como
indesejáveis, de como enovelaram punições de diferentes ordens para expressar
sua intolerância, de modo como buscaram instaurar o privilégio de alguns como
forma exclusiva de poder. Se é certo dizer que tantas vozes foram condenadas ao
silenciamento e à interdição, também vale registrar que ao gesto de calar e
impedir correspondem modos de resistir e de dizer, maneiras imprevisíveis de dar
corpo à indignação e à denúncia.
Blindado e poderoso
Esse trabalho histórico dos sentidos precisa ser recuperado para interpretar,
não sem estranheza e indignação, a sentença dada a Emir Sader. Primeiro pela
rapidez com que a Justiça brasileira (seria louvável se fosse sempre assim), que
em geral tarda muito, veio a galope em defesa do senador, salvando-o da acusação
de racista. Fosse um cidadão qualquer, trabalhador anônimo e pobre desses que
encheram as senzalas de outrora e ainda hoje se submetem às novas versões delas,
certamente anos de espera deixariam o processo engavetado e fariam com que a
sede de uma sentença fosse apenas quimera no horizonte nunca alcançado. Também
vale aqui registrar que, com freqüência, trabalhadores sindicalizados,
integrantes de movimentos sociais, excluídos e sem-parcela são caluniados,
xingados, ofendidos e difamados pelas elites sem que se tenha visto, com tanta
presteza, a Justiça restituir-lhes a honra.
Segundo, porque os efeitos de sentido da escrita de Emir Sader, intelectual com
mais de setenta livros, outras tantas obras organizadas e uma trajetória
impecável de lucidez teórica e pesquisa desenvolvida no país e no exterior,
apenas funcionaram como espelho de algo que foi dito pelo referido senador.
Talvez a celeuma tenha sido justamente essa: ver-se refletido na fala alheia
provocou um desconforto tal, que reclamou a necessidade do silenciamento e da
punição, visto que no espelho de uma voz outra, o próprio dizer tornou-se
insuportável.
Ocupar a voz de autoridade, dada pelo cargo senador da República, inscreve um
modo de emprestar prestígio ao sujeito enunciador, criando uma posição de estar
acima dos outros pobres mortais, de ser representante ele próprio do poder e,
assim, de enunciar de um lugar imaginariamente blindado e poderoso. Ao se
referir ao presidente Lula e à esquerda, o senador manifestou o desejo de
"ver-se livre desta raça por 30 anos". Dois dias depois, em 29 de setembro de
2005, publicou artigo no jornal Folha de S. Paulo, em que tentava
explicar o uso da expressão.
Quanto a ter usado a palavra "raça" – não como designação preconceituosa de
etnia, ideologia, religião, caracteres, mas como camarilha, quadrilha, grupo
localizado –, tão logo alguns falsos intelectuais surgiram, incriminando-me,
apareceram preciosos testemunhos a meu favor. Confesso que falei "dessa raça"
espontaneamente, sem premeditação, usando meu modesto universo vocabular, a
linguagem coloquial brasileira com que me expresso, embora meus adversários
tentem me isolar numa aristocracia fantasiosa.
Palavra e ideologia
O suposto uso de sinônimos (em qual dicionário é possível trocar raça por
camarilha, quadrilha, grupo localizado?), realocando um termo em lugar de outro,
não produz o efeito de uma explicação, mas joga com o modo de a língua ser usada
para dizer e dar manutenção à mesma formação ideológica, assegurando um sentido
ainda mais depreciativo e misturando agora duas ordens de acusação, uma étnica e
outra criminal.
Com base na tradução proposta pelo próprio senador, é possível formular o desejo
de "ver-se livre desta quadrilha por 30 anos", o que implica uma condenação
moral do presidente, do povo brasileiro representado em sua biografia e seus
modos, e dos partidos de esquerda. Acusar pelo pertencimento a um grupo étnico,
acusar pela imoralidade de pertencer a uma quadrilha, cujos sentidos inscrevem
atos de roubo, saque e violência, promovidos por bandos criminosos e fora da
lei.
Sobre isso, vale marcar aqui que esse significante foi e ainda é colocado em
discurso para nomear negros aquilombados, os canudenses do Arraial do Belo
Monte, os caboclos do Contestado, os integrantes das Ligas Camponesas e os
integrantes do MST hoje. Tais ocorrências de ordem lingüística nos convidam a
refletir sobre o modo como as palavras materializarem a ideologia e a forma como
elas jogam com o(s) sentido(s) sobre o político, inscrevendo os sujeitos em
determinada posição.
Desconforto materializado
Dessa posição, o sujeito toma para si um papel e atribui ao outro e ao objeto do
discurso uma representação que lhe convenha ou lhe seja possível assumir,
enunciando nesse meio fio em que muitas vezes o dizer escapa "espontaneamente,
sem premeditação". Pois é justamente aí, nos atos falhos, nos equívocos, nos
deslizamentos de sentido, nas hesitações e nas substituições de palavras que a
ideologia e o desejo cravam a sua tatuagem, indiciando a formação social à qual
o sujeito está preso. No caso, da posição de senador, líder do PFL e banqueiro,
é dado como natural que a referência a tudo o que tenha relação com povo seja
tratado como questão de raça ou de quadrilha, evocando desejos de extermínio e
eliminação.
Às vozes oponentes e questionadoras da evidência desses sentidos, relembramos
aqui o trabalho histórico dos sentidos sobre silenciamento e interdição.
Observa-se, então, o seguinte deslocamento: do discurso agressor e difamatório à
posição de vítima de calúnia e difamação, buscando ancoragem na condição de que
"meus adversários tentem me isolar numa aristocracia fantasiosa". Recorrer ao
jurídico como lugar de autoridade, inverter o efeito do dito de intolerância
tornando-o reflexo da maldade alheia, condenar a voz que critica, calar à custa
da cassação de direitos: eis o funcionamento em curso.
A voz do professor Emir Sader apenas materializou o desconforto de inúmeros
intelectuais em relação ao depoimento do senador, fazendo falar uma tecelagem
discursiva de denúncia da forma natural e espontânea como a declaração foi dita
e divulgada.
Por ser racista e odiar o povo brasileiro (...) Ele toma o embate atual como um
embate contra o povo – que ele significativamente trata de "raça" (...) revela
agora todo o seu racismo e seu ódio ao povo brasileiro com essa frase, que saiu
do fundo da sua alma – recheada de lucros bancários e ressentimentos. Ele merece
processo por discriminação, embora no seu meio – de fascistas e banqueiros –
sabe-se que é usual referir-se ao povo dessa maneira – são "negros", "pobres",
"sujos", "brutos" – em suma, desprezíveis para essa casa grande da política
brasileira que é a direita – pefelista e tucana –, que se lambuza com a crise
atual, quer derrotar a esquerda por 30 anos, sob o apodo de "essa raça".
Resposta com indignação
Tem-se aqui um modo de contestar, desautorizar, subverter os sentidos tomados
como evidentes pelo senador ao dizer raça e quadrilha, alocando-os
em outras redes de memória.
As palavras do pesquisador põem em discurso o confronto de classes sociais (e
interesses), marcando como poderes, saberes e dizeres são distribuídos de
maneira desigual no país, ou seja, conferindo a poucos o acesso à casa-grande e
mantendo a maioria assenzalada. Quando atribui ao depoimento do senador o lugar
da elite branca e banqueira, o sujeito coloca-se em outra posição, a saber,
aquela em que estão negros, pobres e não-banqueiros, para, desse lugar,
desnaturalizar o que parece evidente e espelhar o dito alheio, desenhando uma
interpretação em que ecoam efeitos de redes de memória silenciadas. Nomear o
modo como a elite historicamente designou o povo, colocar a nu as formas de
discriminação que o uso social dado ao significante raça já inscreveu e
ainda inscreve, rastrear a historicidade do que é ser direita e esquerda no país
e relacionar tais noções com as formas de inscrição do/no político são efeitos
de uma resposta.
Resposta com indignação de quem não se satisfaz com o significado de uma palavra
dita ou redita por uma autoridade política do país, mas consegue escavar os
implícitos de seu uso, interpretar as representações ideológicas em discurso,
questionar o modo como a linguagem é tomada, desvestir de aceitação a ordem das
imposições e dos preconceitos. Resposta que também fala, em seu avesso, pelo que
tantas vozes silenciadas não puderam e ainda não podem falar, pelos que foram
mortos com a palavra presa na garganta, pelos que foram falados pela classe
dominante sem nunca alcançarem o lugar da autoria de seus próprios ditos;
resposta que, por tudo isso, incomodou tanto.